terça-feira, 6 de abril de 2010

Quando um não quer, o outro quer

Uma vez era…

A pequena sob os meus cuidados contava apenas 6 anos. Sabedoria e astúcia são características marcantes em seu comportamento. Fato é que na sua história, elementos como rejeição sucedida por um abandono a tornaram filha de uma outra família, diferente da que a concebeu biologicamente.

Diagnosticada pela psiquiatria com "Transtorno Opositivo Desafiador", penso que ela só deseja fazer os adultos refletirem sobre simples coisas mundanas.

Ela adentra o meu consultório certo dia, manifesta tristeza em seu rostinho alvo branco e me questiona: “Tia Claudia, por que as pessoas brigam?”

Em seguida conta uma calorosa briga entre os pais e diz que já está na hora de reunir a família para um encontro de “brincadeiras”, só obedeço.

E vem a família. Cada um descreve suas opiniões sobre os motivos pelos quais as pessoas brigam. A pequena diz: “Porque um não empresta pro outro o que o outro quer emprestado” e continua: "as pessoas não sabem dividir as coisas", resumindo em uma linha o problema da humanidade.

As pessoas não querem emprestar seu tempo, sua paciência, sua compaixão, seu amor, seus ouvidos, seus pertences, suas crenças, suas opiniões, sua tolerância, sua intimidade. As pessoas não querem “prestar em” serviço do outro nada que supostamente lhe pertença.

Voltando ao setting terapêutico, o pai diz: “nós brigamos porque a sua mãe não queria conversar e eu sim, então continuei falando mesmo que ela não quisesse”.

A mãe rebate o pai indiretamente, dirigindo-se a filha e tentando lhe ensinar o conhecido ditado: “filha, quando um não quer…” e espera a complementação tradicionalmente conhecida. Mas, ela rompe o ditado com a sua fascinante imprevisibilidade infantil e continua: “… O OUTRO QUER”.

E ela quebra paradigmas, modifica ditos populares, busca novas respostas, arranca sorrisos, gera dúvidas, pondera as incertezas, torna os corações mais tolerantes e flexíveis, pois para ela a vida é assim: “ QUANDO UM NÃO QUER, O OUTRO QUER”, tal como foi a sua história de adoção.

Aquilo que não serve para uns, certamente será de grande valia na vida de muitos outros. E a pequena acima, cada vez mais linda e brilhante parece conhecer com sabedoria o fluxo da vida, que um dia almejamos alcançar com a maturidade.

Salve as pessoas, salve o mundo, recicle tudo, partilhe, transforme, preserve, repasse o que não se quer mais. Certamente em algum lugar, em algum momento, alguém precisa daquilo que já não te serve. Imagine um mundo assim e faça acontecer!

3 comentários:

  1. Que prazer te achar, via nossa querida Vanessa Aguiar. Pois é, o velho ditado" qdo um não quer 2 não brigam" tão bem desenleado nesta história sua, fala tanto da exclusão né? Será q pra se viver junto temos q ser pela metade, como na música "o metade de mim?, o metade afastada de mim"...? temos que nos desbotar e seguir sem-rosto-nem-gosto os caprichos do "outro", para que a "moldura do porta-retratos social" jamais desmorone de sua hierática posição na mesa de escritórios imponentes, de Ceos bem treinados e bem casados, brilhantes e infinitamente sorridentes executivas... O garotinho aí da sua história tão palpável e permeável, mostrou que " quando um não quer o outro quer " ou "pode querer" né? e é por isso q nos abandonamos tanto de nós mesmos, de nossas contradições, sabores agridoces, mix de fel-e-mel... pra permanecer "casados com o incoercível" com o correto dogmática e socialmente "com um parceiro único-até-q-a-morte-nos-separe... Axiomas do medo. E da robotização descerebrada humana... Lembrei-me agora de uma mulhar genial a Regina Navarro Lins, que "lava e pendura no varal da vida" bem ao vento de quaisquer especulações da natureza...nossas múltiplas e complexas e maravilhosas naturezas. Li isso em seu livro "Fiz a Cama na Varanda"... E aí, querida Cláudia, mta vezes preferimos viver pela metade, como canta magistralmente a Zizi Possi, cercados de parceiros-muleta, que nos suportem e carreguem os aleijões e medos dessa alma tão trêmula, assustada e carente, que serpenteia silente por nosso corpo e veias, não é?...
    Prazer enorme em te-ler-degustar-conhecer.
    Sou a Graça Taguti, no twitter a @ uhuh.
    Bjsss (dados e trocados, com plena anuência mútua, espero, rs)

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  2. Prazer imenso o meu te ter como leitora do meu tão recente blog. Escrevo desde menina minhas informalidades e também material técnico na área da psicologia, porém agora, através desse blog dei escape para os meus devaneios. Vanessa é uma queridona admirável. O Desbancando Balzac faz parte da minha cabeceira. Queria que escrevessem mais. Acompanho desde o nascimento, que por sinal hoje completa 3 anos. Acabei de entrar no twitter e ainda estou me familiarizando. Vou te achar por lá.

    Seja bem vinda. Será um prazer ter uma alma pensante e profunda complementando e ponderando meus despretensiosos textos compartilhados.

    Essa história é de uma pequena adotiva que acompanho no meu trabalho como psicóloga. Porém, também sou mãe adotiva. Quando quiser, leia os posts "Brinca-dor" e "Por que tudo acaba", fala da personalidade do filhote. Acho que a experiência da adoção contribuiu para essa percepção. Eles são de fato crianças com expressões diferenciadas no mundo.

    Grande beijo, com prazer imenso retribuído. Seguimos falando.

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