domingo, 21 de março de 2010

Brinca-dor



Uma vez era... uma manhã numa sala de espera de um centro cirúrgico, aguardando o filhote de 4 anos operar... um papel, uma caneta e algumas palavras soltas na mente, era tudo que me restava da conexão com o mundo real...

A possibilidade da des-graça de perder um ser amado nos faz perceber e empreender a importância de ver a graça da vida, das pessoas, dos momentos felizes.

Se pudesse descrever as sensações, diria que o coração desceu para o joelho, profundo, áspero, cerrado, denso e silencioso, perdeu a graça do caminhar por horas. Acho que algumas mães sabem o que isso significa. Apertado, sufoca e, de baixo pra cima, como um golpe, reprime e asfixia o peito, sobe um corpo sólido, compacto, pelo pescoço, ressentido, sem compaixão, parece uma faca atravessando a garganta, dói, esquenta a face e lança fugazmente pelo repositório das emoções o transbordamento de uma lágrima.

Mais pressão, ebulição, maior intensidade e implode o abrigo dos sentimentos. A porta foi arrombada. De assalto, o coração parece ser arrancado do peito por uma forte mão de ferro. Em suspenso, quase não respira, do tambor ecoa apenas uma flauta melancólica. Quero minha graça de volta. Me devolve, imploro!

No quarto, ele é um brinca-dor, aquele que brinca com a dor. Sempre foi assim, e mostra ao mundo: “eu acho que vou brincar de novo, outra vez”.

Brinca, brinca, brinca, meu João, meu palhação. Rodopia de “vestido” (curtindo a roupa do hospital), canta e dança, todos acham uma graça.

O mundo é feito de doce de leite, cremoso, derretendo, duro, mas sempre, sempre doce de leite, como diz sua avó, de fato, é uma grande graça.

Brinca, brinca, brinca, meu menino travesso, que encanta e se encanta com o mundo. Inocência é pouco diante dos olhinhos curiosos, que contém estrelas, que irradia amor e reedita sempre, a coragem de brincar com a dor, é uma graça.

Enquanto ele é um brinca-dor, eu sou um ser escreve-dor, cuida-dor e conta-dor, que estou aqui a contar e escrever esses momentos e, como sempre, a cuidar da dor. Cada um com a sua competência.

Amo-te meu filho. Seu especial senso de humor e de brincar com a dor, tornou-me sua eterna aprendiz. Queria eu ter nascido com esse potencial, mas se assim fosse, talvez não estivesse aqui contando essa história.

Você é sempre uma excelente notícia, tudo em ti é novo sempre, tudo em ti é brinca-dor.

É bom tê-lo em meus braços novamente!

Agora eu acho que ele vai brincar de novo, outra vez.

Que graça! Graças a Deus.

Sugestão de leitura:

“Ler e contar, contar e ler” - caderno de histórias, por um grande homem, contador de histórias, chamado Francisco Gregório Filho. Em breve sua história nesse blog.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Descaminhar

Uma vez era a história de uma sujeita que se descaminhou. Após mais de 20 anos esquadrinhada pela disciplina que organizava o seu espaço, consumindo sempre mais de 40 horas do seu tempo no trabalho e envolta numa carga emocional duplicada pela máquina corporativa, quase abandonou os seus sonhos. Se tivesse mais tempo talvez tivesse realizado alguns outros.

Sim sujeita, sujeita que se sujeitava ao isolamento de um espaço quase fechado, esquadrinhado, hierarquizado que propiciava o desempenho de funções pré-estabelecidas. Tal como siri na lata, o coração disparava como tambor por novos anseios, pelo grito de liberdade.

Segundo Foucault, as relações de poder disciplinar não necessariamente necessitam de um espaço fechado para se realizar, mas sim do controle do tempo, do tempo para produzir o máximo de rapidez e eficiência. TEMPO, elemento precioso e objeto de consumo tão desejado nos dias atuais. Então, essa sujeição do corpo ao tempo, ao tempo do outro, em vigilância foi finalmente descaminhado. A decisão de subtrair direitos (sim, carteira assinada, plano de saúde, tíquete refeição, 13º e blábláblá), de perverter a ordem do consumo (ela quer tempo, sente-se novamente dona dele, é isso que quer consumir com liberdade), o desgoverno no orçamento doméstico, entre outros extravios são preços do descaminho.

Está indo, lúcida e insensata. Trocando o porto “seguro” pelos mistérios dos novos portos, pelas novas portas que ainda serão abertas. Ali jaz a loucura que estava sendo produzida por um caminho. Um caminho que exclui o prazer, o ócio, a possibilidade da concretização de sonhos. E ela vai, sempre vai, ir e vir é o que gosta de fazer. A mente inquieta e a alma profunda brigam e gritam sem parar. O corpo dela fala, dança, reclama e ele a impulsionou. É o lançador de foguetes e estava emperrado, movia-se com dificuldade em direção ao trabalho. Empenado e torcido se desviou da linha de prumo, vivia com dores, na coluna, na cabeça, exausto. Como pode estar aprisionado, em cárcere institucional por tantas horas? Como pôde permitir o esgotamento da sua energia vital com a crença: mais horas de trabalho é igual a maior prosperidade?

Descaminhada está agora, depois de refletir afastada do mundo corporativo durante 30 dias. Quando não se usufrui de muitos dias de férias (ou nenhum) nos mantemos ocupados, com a máxima produção, não nos permitindo mergulhar no ócio e produzir nossos próprios desejos. Nossos desejos passam a ser corporativos. Desejamos o que nossas corporações desejam. O que achamos que é nosso desejo, foi produzido pelas mídias de consumo. Queremos ganhar mais para "ter" mais, abandonamos o "ser". É o hospício que produz o louco e não o contrário.

Enfim, descaminhada está. Desconstruindo crenças, normas, valores, realizando novos caminhos, adentrando novas portas, lançando-se em novos voos. Medo? Sim. Convicta? Jamais. Aventureira? Sempre. Tensa? Não, mais relaxada do que nunca, encantada pelas coisas mundanas, pelos apelos da alma e pelas pequenas belezas grandiosas.

E ela foi! Quem é ela? O que ela quer? Descaminhada está, enfim, para descobrir!

Quem quiser que conte outra. Dizem hoje em dia que ela navega pelo mercado livre com a seguinte diligência: “Compro tempo no mercado livre, ofereço sonhos e anseios em troca desse meu poder.”

Dizem as lendas que ela anda por aí realizando novos projetos, estudando (sim reaprendeu a ser aprendiz), aprendendo novas prosas e poesias, contando histórias para o seu filho, dançando, enamorando-se de novo, re-encantando-se pela vida, escrevendo, se preparando para o mestrado. Dizem que ela está mais perto dos seus sonhos. Dizem que ela anda cada vez mais distraída. Dizem...

Sugestões de leitura para o descaminho:

“A Economia do Ócio” / Bertrand Russel, Paul Lafargue – por Domenico De Masi
“Vigiar e Punir” – de Michel Foulcault