quinta-feira, 18 de março de 2010

Descaminhar

Uma vez era a história de uma sujeita que se descaminhou. Após mais de 20 anos esquadrinhada pela disciplina que organizava o seu espaço, consumindo sempre mais de 40 horas do seu tempo no trabalho e envolta numa carga emocional duplicada pela máquina corporativa, quase abandonou os seus sonhos. Se tivesse mais tempo talvez tivesse realizado alguns outros.

Sim sujeita, sujeita que se sujeitava ao isolamento de um espaço quase fechado, esquadrinhado, hierarquizado que propiciava o desempenho de funções pré-estabelecidas. Tal como siri na lata, o coração disparava como tambor por novos anseios, pelo grito de liberdade.

Segundo Foucault, as relações de poder disciplinar não necessariamente necessitam de um espaço fechado para se realizar, mas sim do controle do tempo, do tempo para produzir o máximo de rapidez e eficiência. TEMPO, elemento precioso e objeto de consumo tão desejado nos dias atuais. Então, essa sujeição do corpo ao tempo, ao tempo do outro, em vigilância foi finalmente descaminhado. A decisão de subtrair direitos (sim, carteira assinada, plano de saúde, tíquete refeição, 13º e blábláblá), de perverter a ordem do consumo (ela quer tempo, sente-se novamente dona dele, é isso que quer consumir com liberdade), o desgoverno no orçamento doméstico, entre outros extravios são preços do descaminho.

Está indo, lúcida e insensata. Trocando o porto “seguro” pelos mistérios dos novos portos, pelas novas portas que ainda serão abertas. Ali jaz a loucura que estava sendo produzida por um caminho. Um caminho que exclui o prazer, o ócio, a possibilidade da concretização de sonhos. E ela vai, sempre vai, ir e vir é o que gosta de fazer. A mente inquieta e a alma profunda brigam e gritam sem parar. O corpo dela fala, dança, reclama e ele a impulsionou. É o lançador de foguetes e estava emperrado, movia-se com dificuldade em direção ao trabalho. Empenado e torcido se desviou da linha de prumo, vivia com dores, na coluna, na cabeça, exausto. Como pode estar aprisionado, em cárcere institucional por tantas horas? Como pôde permitir o esgotamento da sua energia vital com a crença: mais horas de trabalho é igual a maior prosperidade?

Descaminhada está agora, depois de refletir afastada do mundo corporativo durante 30 dias. Quando não se usufrui de muitos dias de férias (ou nenhum) nos mantemos ocupados, com a máxima produção, não nos permitindo mergulhar no ócio e produzir nossos próprios desejos. Nossos desejos passam a ser corporativos. Desejamos o que nossas corporações desejam. O que achamos que é nosso desejo, foi produzido pelas mídias de consumo. Queremos ganhar mais para "ter" mais, abandonamos o "ser". É o hospício que produz o louco e não o contrário.

Enfim, descaminhada está. Desconstruindo crenças, normas, valores, realizando novos caminhos, adentrando novas portas, lançando-se em novos voos. Medo? Sim. Convicta? Jamais. Aventureira? Sempre. Tensa? Não, mais relaxada do que nunca, encantada pelas coisas mundanas, pelos apelos da alma e pelas pequenas belezas grandiosas.

E ela foi! Quem é ela? O que ela quer? Descaminhada está, enfim, para descobrir!

Quem quiser que conte outra. Dizem hoje em dia que ela navega pelo mercado livre com a seguinte diligência: “Compro tempo no mercado livre, ofereço sonhos e anseios em troca desse meu poder.”

Dizem as lendas que ela anda por aí realizando novos projetos, estudando (sim reaprendeu a ser aprendiz), aprendendo novas prosas e poesias, contando histórias para o seu filho, dançando, enamorando-se de novo, re-encantando-se pela vida, escrevendo, se preparando para o mestrado. Dizem que ela está mais perto dos seus sonhos. Dizem que ela anda cada vez mais distraída. Dizem...

Sugestões de leitura para o descaminho:

“A Economia do Ócio” / Bertrand Russel, Paul Lafargue – por Domenico De Masi
“Vigiar e Punir” – de Michel Foulcault

3 comentários:

  1. Boa sorte para a sujeita que se descaminhou ;-)

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  2. Precisamos descaminhar para caminhar... é a vida. Movimento necessário, sempre!

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  3. Claudia,
    Para variar, estamos em momentos semelhantes. É preciso pensar fora da caixa que nos faz acreditar sem quem não somos, Ou parte do que acreditamos ser. Somos movidas à desafios, Vidas cíclicas e sempre, sempre sem esquecer da nossa essência, dos nossos ideais e sonhos que nos fazem manter este mundo girando. Não podemos parar. Seria injusto com a gente, com os que dependem de nós, com a magia da vida. Realização é a palavra, seja em que espaço ou situação for.
    Vai em frente...Tô seguindo você irmã. Sou movida a realizações e sonhos e isso faz brilhar meus olhos e me dá cada vez mais força para ajudar a mudar um pedaço desse grandioso mundo.
    Parabéns.Bjs!

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